Tributo a

Billie Goodell

A Fundação Rampa está de luto desde o dia 31 de agosto de 2009, data do falecimento do “amigo-colaborador” Billie Goodell. O início desta nova fase da Fundação Rampa deve-se muito a este norte-americano, natural do estado do Alabama, que com 18 anos passou por Natal, no ano de 1942, como membro da Marinha dos Estados Unidos, onde permaneceu até outubro de 1944.
Graças à sua colaboração e generosidade, o acervo da Fundação passou a contar com um inestimável material, único e nunca antes visto em terras potiguares. Além do relato oral de sua passagem pelo Brasil, Billie cedeu fotos particulares da década de 40, do período em que esteve no Rio Grande do Norte.
Ele sempre teve imenso prazer em trocar e-mails explicando como era a vida em Natal durante a Guerra, do ponto de vista do americano, sendo assim a inspiração para o trabalho que se seguiu, de desvendar os anos de guerra através de relatos das testemunhas da História, ao invés de simplesmente repetirmos a História oficial, fria e sem cor. Em seus relatos cheio de vida pudemos imaginar a Natal dos bailes do United Service Organization (USO), a Rampa, Parnamirim Field, o Wonderbar e a vibrante interação dos brasileiros, ou melhor dizendo, das brasileiras com os americanos.

Com 17 anos, em 21 de fevereiro 1941, ele se alista na Marinha, ainda antes do ataque japonês a base de Pearl Habor, ocorrido em 7 de dezembro de 1941. Três dias depois, os americanos chegam ao estado, ocupando as instalações da Rampa, com o esquadrão VP-52, o qual foi substituído em março de 1942, pelo VP-83 – o primeiro esquadrão a operar de Parnamirim Field, uma vez que suas aeronaves eram anfíbias. Com este novo esquadrão chega também o nosso amigo Billie Goodell.
O ano de 1942 presenciava uma atividade incessante de submarinos do Eixo no Brasil, fazendo vitimas brasileiras e estrangeiras, numa costa sem defesas. A primeira divisão do VP-83 chega então em 7 de abril de 1942, enquanto a segunda ficou realizando missões de Busca e Salvamento na Florida e na Carolina do Sul, até que foi transferida para Natal, chegando em 13 de junho. Ele veio no navio U.S.S. ABermarl, um tender de hidroaviões, com a primeira divisão; os aviões vieram voando com escalas até Natal.
O esquadrão, com 11 aviões, começou patrulhas sistemáticas do nosso litoral, como nos contou Billie certa ocasião: “Do Rio até Belém passei por toda a costa... essas cidades da costa me deixam com saudade...passei um tempo num monte delas...vocês tem sorte de morarem lá”.
O VP-83 cobria 3.200 Km de rota entre Bahia e Cabo Orange, no extremo norte. Eles chamavam essa parte do Atlântico Sul “The Southern Cross” (Cruzeiro do Sul). Neste período, os submarinos ainda dominavam os mares e nenhum tinha sido afundado no Brasil, embora a 22 de maio, um B-25 da FAB, do Agrupamento de Aviões de Adaptação, de Fortaleza, atacou o submarino italiano Barbarigo entre o Atol das Rocas e Fernando de Noronha, foi nosso primeiro ataque a um submarino do Eixo.

Com a chegada de 1943, o grande momento de Billie chegou também, e em 6 de janeiro, ao largo de Fortaleza ele avistou a esteira característica deixada pelo submarino na superfície da água e informou ao piloto, Ltjg Ford, que direcionou o Catalina 83-P-2 para o ataque. Billie era Machinist Mate 3rd Class/Flight Engineer and gunner ( Mecânico 3ª classe/engenheiro de vôo e artilheiro). Como tal, ocupava a metralhadora “ponto 50” na gôndola esquerda transparente do Catalina e quando do mergulho para o ataque ele concentrou o fogo frenético de sua metralhadora nas artilharia anti-aérea (AA) do submarino, que não pode defender-se do ataque preciso das cargas de profundidade MkVII lançadas pelo tenente Ford e sucumbiu.
Era o fim do U-164, Tipo IXC da 10ª Flotilla. Dos poucos que conseguiram sair do submarino, apenas dois chegaram à costa e foram presos. 54 pereceram.

Billie ao lado do Catalina 83-P-2

 

Billie praticando a função de artilheiro com sua "ponto 50"

 

Billie - ao centro - com tripulação do Catalina
83-P-2

 

Foi o momento de glória do Billie, ele avistou o submarino e impediu que ele revidasse inutilizando suas AA com mira precisa de sua “ponto 50”. Os colegas do esquadrão, então, o apelidaram de “Eagle Eyes” ( Olhos de Águia). Por isso, ainda, o comandante da 4ª frota, Almirante Ingram o condecorou com a DFC ( Distinguished Flying Cross = Cruz de Vôo Distinta ), no evento que marcou o primeiro afundamento de um U-boat ou U-boot em águas brasileiras.

À parte da condecoração, foi promovido a aviation machinist mate first class e ele ganhou o que há de mais importante para um soldado em combate no exterior, ganhou do oficial comandante uma folga de 30 dias nos EUA, junto de seus tios em Bessemer onde foi objeto de uma matéria no jornal local, que o retratou como herói, contando com humildade que jogaram os próprios botes salva-vidas (foram 2, o primeiro ficou longe e os alemães não conseguiram pegar, então lançaram o segundo, com sucesso), água e víveres para os alemães, “que afinal eram só pessoas ” a custa de ficarem sem botes caso tivessem que saltar no mar, se houvesse um acidente.
Naquela época os soldados não tinham permissão de contar onde estavam estacionados. Ele tinha um amigo na sua cidade proprietário de uma estação de rádio para onde ia nos tempos livres ouvindo as músicas. A primeira pergunta do amigo foi onde ele estava estacionado, no que respondeu que não poderia dizer, mas gostaria que o amigo tocasse para ele a musica “Brazil”. Seu amigo deu um grande sorriso e concordou, tendo entendido onde ele estava e tocou a música. A música “ Brazil” em questão, era na verdade “Aquarela do Brasil “ de Ari Barroso, gravada nos EUA por “big bands” como a de Jimmy Dorsey.

VB-107 / VPB-107

Em 15 de maio de 43 foram renomeados VB-107 e partiram para os EUA para trocar de equipamento, trocavam os seus Catalinas pelo mais potente “Liberator”. Em junho já estavam de volta e em julho já estavam operacionais.
Seu novo avião tinha um “nose art” denominado, “Galloping Ghost of the Brazilian Coast”, um esqueleto montado numa bomba avistando um submarino. O nome foi dado em homenagem a um jogador de Football Americano.
Foram dias difíceis, a principio ficavam em barracas até os alojamentos serem construídos, nenhum conforto, calor, distância de casa, patrulhas cansativas numa imensidão de mar, dia ou noite. Quando tinham um comboio para escoltar, ficavam de 10 a 12 horas voando sobre o comboio ate que outro avião os substituísse, então voavam para a cidade mais perto para reabastecer e dormir e no dia seguinte partiam para substituir o avião em patrulha e assim sucessivamente até que o comboio saísse de sua área operacional.

Nose Art do “Galloping Ghost of the Brazilian Coast”. A aeronave se acidentou em 1943. Billie retirou a chapa com o desenho do submarino e deu ao filho, que perdeu anos depois.

RELATOS

Macaco voador: Numa dessa patrulhas eles aterrissaram em Belém para a noite. Um dos tripulantes do seu avião deu uma saída e comprou um macaco de estimação para levar a Natal. Na parte traseira do Liberator existe uma porta que se abre para cima, onde as metralhadoras “ponto 50” articulam para fora e entrar em ação. Na volta para Natal o municiador resolveu brincar com seu macaquinho e a primeira coisa que o bicho fez foi pular na metralhadora onde foi imediatamente sugado para fora pelo vento. “Tristeza a bordo”, relatou Billie.

Billie com macaco igual ao perdido no voo de Belém para Natal

 

Maria Boa: Quando não estavam voando, estavam trabalhando nos aviões ou treinando bombardeio em alvos simulados em terra ou submarinos aliados no mar, para se medir a precisão de ataques em vários ângulos e alturas. Numa parte despovoada ao norte de Parnamirim, perto da praia eles cavaram na areia um padrão de um U-boot. Duas tripulações se revezavam nessa pista. Uma ia lá num caminhão rádio e media a distancia que a outra tripulação num avião jogava a bomba. Usavam uma bomba de chumbo de 9 libras com um cartucho de carabina que deixava uma fumaça onde atingia. Tinham que medir e avisar ao avião aonde eles atingiram. Num desses ataques simulados, o piloto do Liberator queria que Billie tirasse uma foto de um de seus ataques e ele subiu no caminhão radio com sua camera K 25 e esperou. O Liberator veio do mar a 15 metros de altura e quando passava por cima do Billie, ele disparou a máquina e foi imediatamente arrancado de cima do caminhão pelo deslocamento de ar e jogado na areia. Não se machucou. Já imaginaram uma rasante de um Liberator ? Com você embaixo dele ?

Foto acidental feita por Billie após ser jogado do caminhão pelo deslocamento de ar da aeronave

 


Na cidade de Natal, eles tinham permissão de freqüentar 2 bares, onde podiam tomar uns drinks e conversar com umas garotas, um ficava de frente para a água, chamado Wonderbar e um mais acima chamado Goodmary (Maria Boa). No último, tinha um pátio enorme onde se sentavam e se refrescavam. Uma das meninas, conhecida como Cymara Britto sempre se sentava à sua mesa e bebia com Billie e os americanos amigos. Eles pagavam as bebidas e elas ganhavam comissão sobre a conta, quanto mais bebiam, mais elas ganhavam. Um dia, Cymara chega com uma caixa de bombons e Billie conta que na hora disse:
- Oba, para mim ?
Ela se sentou abriu a caixa e disse:
- Sim, isso é para você se algum dia eu te ver bebendo com outra mulher“
Dentro da caixa havia um 38 carregado, fazendo com que Bill deixasse o local pensando que a mulher havia enlouquecido. Meses depois, quando resolveu ir a praia da Redinha, com acesso apenas pelo rio Potengi, num barco a vela, Billie decide ficar mais tempo e cruzar diretamente para a Rampa, onde era o seu serviço semanal. Quando entrou no barco lá estava Cymara com uma peixeira de mais de 30cm. Ali perto havia um “Liberty Boat” da Marinha descendo alguns marinheiros para a praia e quando ele viu que ela ia na sua direção, se jogou na água e nadou na direção do bote da Marinha gritando “sou americano”, então, eles o puxaram para dentro e o deixaram na Rampa. Ele ficou longe do Goodmary por um mês até que seus amigos disseram que ela tinha ido para Recife.
Após um mês aproximadamente, um de seus amigos e ele resolveram voltar ao Goodmary e tomar alguns drinks. Pegaram uma garrafa no bar e se sentaram sozinhos numa mesa, que ficavam num pátio cercado por um muro alto. Após alguns drinks, começou a ouvir uns “psiu, psiu”. Ele perguntou a seu amigo o que podia ser esse barulho, que sempre era acompanhado de uma luz vinda de trás da parede. Ele esperou e olhou de onde a luz vinha e viu de relance a Cymara por detrás do muro refletindo o sol com uma peixeira. Ele agarrou a garrafa e o quepe e falou ao amigo “vamos dar o fora daqui”. Nunca mais voltou ao Goodmary.


Sorte: Numa de suas viagens às Ilhas Ascensão foram avisados que um bombardeiro Mosquito inglês tinha decolado de Natal e ia fazer um pouso de emergência com problemas no motor, quando então viram no horizonte o avião se aproximando com aquela linha de fumaça saindo de um dos motores. Era uma mangueira de óleo quebrada que foi reparada. Passaram a noite e no dia seguinte o piloto falou ao co-piloto para ficar em terra enquanto ele testava o avião, que era feito de madeira, antes de seguir para a África. O piloto do Mosquito deu partida no seu avião e iniciou a decolagem, quando chegou no final da pista, onde havia uma montanha, sem altura suficiente, colidiu direto com ela numa enorme explosão. Foi o dia de sorte do co-piloto, que queria ter ido junto no teste. Esse Mosquito tinha partido de Natal, que era o trampolim para o Norte da África e os aviões decolavam de lá dia e noite.


APÓS O BRASIL

Billie deixou Natal em dezembro de 44. Se realistou e foi destacado para o VPB-109 em Okinawa, voando Privateer. Uma realidade muito diferente da do Brasil, com os aviões kamikazes se jogando na pista, explodindo aviões, “mas assim que os japoneses souberam que eu cheguei, se renderam”, brincava. Billie ficou na Marinha por 22 anos e quando se aposentou em 1962 continuou por mais 18 anos trabalhando para a Marinha.

Foto recente de Billie Goodell

 

Billie com sua "ponto 50"

 

Descansando sob a asa de um "Liberator"

 

Depois da guerra, Billie ainda continuou servindo à Marinha dos Estados Unidos

 

Andando a cavalo em Natal

 

Retornando da praia de Ponta Negra em Natal

 

Retrato dos momentos de lazer dos americanos em tempos de guerra

 

Uma das opções de lazer dos americanos em Natal : praia de Ponta Negra.